Primavera, 10 de outubro de 1980.
O clima do domingo era ameno, com um céu, de um azul incrível
e algumas nuvens desenhadas nele. Pareciam mesmo flocos de algodão! Ah...era
sem sombra de dúvida a paisagem mais linda e aterrorizante que poderíamos ver
de cima de uma aeronave. Eu em particular, preferia sempre voar de dia. Ver o
céu, as matas de cima, as nuvens, era o que abrilhantava minhas viagens mesmo quando
não eram assim tão interessantes.
Estava tão distraída que mal ouço o aviso de atar novamente os
cintos, pois em breve pousaríamos. Como era fantástico tudo isso. Eu sempre
ficava absorta em olhar tudo.
Até ali, tudo tinha sido dentro do previsto. Aquela era uma
cidade aconchegante e de uma beleza europeia. Eu sempre gostei de estar ali. Os
espécimes eram de uma beleza radiante, flores, pássaros, pessoas. Digamos que
sempre tinha um colorido incomum e eu adorava.
Como eu ainda tinha tempo, resolvo que antes de qualquer
coisa, eu passearia um pouco. Ali tinha um parque lindo que possuía um espelho
d’agua digno de filme, pedreiras, arvores, que denotavam uma calma estonteante.
A temperatura, já estava mais calma e apesar do horário avançado,
ainda era dia. Gostava do horário de verão
(que começava na primavera), por este motivo. Hora avançada, mas o dia ainda
parecia que ia alto. Escolho um belo lugar, de frente para o espelho, uma
sombra boa e fico ali, apreciando o caminhar das pessoas, o tipo de cada um.
Seres humanos eram sem dúvida fascinantes. Em um canto, crianças brincavam com
a família, no outro, um casal nitidamente discutindo no mínimo alguma
banalidade, pois não pareciam estar alterados, mas sim, digamos, trocando opiniões.
Que aquilo não virasse uma briga, por favor. Estragaria o belo momento do
lugar. Em outro canto, o amor era nítido. Notava-se dedos entrelaçados, toques
sutis, beijos com ternura. Talvez aquilo desse uma boa história. Acho que em
algum lugar da minha mente, aquilo foi o que sempre quis para mim, não uma
coisa de toques sem sentido, mas toda uma cumplicidade de olhares que diziam: “
eu entendo bem você”, “ sim, temos nossas divergências, mas vamos superar”.
Bom, devo dizer que essa não era uma realidade que se apresentava na minha vida
naquele momento.
Eu tão absorta que estava, não notei que de longe alguém me
olhava. O livro da minha mão havia caído ao meu lado e eu nem havia notado.
Recolho o lenço que coloquei para sentar, olho mais uma vez tudo aquilo e já ia
indo embora, quando ouço alguém me chamar.
Ao me virar para trás, talvez eu tenha tomado um susto, pois
a estranheza que me causou olhar para o rapaz que me encarava, havia sido bem
estranha. A pele era morena, os olhos claros e uma barba rala, meio grisalha
já. Não parecia com os moradores daquela cidade, mas a miscigenação era geral e
havia mistura de todos os tipos em todos os lugares. Ele segurava meu livro nas
mãos enquanto sorria.
- Deixar esse exemplar para trás lhe traria um grande
transtorno. – Me disse ao entregar o exemplar na mão. Que ainda sem entender
minha reação, estendo a mão para pegar.
- Obrigado. São realmente anotações de estudo. Só me daria o
trabalho de levantar todas as - dúvidas novamente.
Meu sorriso era tímido, qual é? Que estava acontecendo.
- Eu já estava de saída, me perdi em pensamentos e o deixei
para trás.
- Ele é um livro muito bom, muitos ensinamentos, porém
alguns ainda nos deixam meio cabreiros, se assim posso dizer. Se não está com
pressa, ali há um café e posso lhe tirar algumas dúvidas se quiser, no momento,
sem compromisso. Mas se forem muito difíceis, posso ter que lhe pedir que me
pague o jantar, ou talvez que eu ajude a pelo menos, carregar sua bagagem. Eu
já li esse livro duas vezes, mas pode ser que o que eu ainda não compreenda, você
me esclareça. Que te parece?
Uau, direto! Ele mal tinha me dado tempo para pensar um
pouco, já carregava minha mala e me guiava ao café.
- Ok, visto que já sequestrou minha bagagem e ainda está de
posse do meu livro, já que puxou a sua mão para que eu não pegasse. E ainda pode
me dar aulas de religião? Que Deus não nos castigue.
Ela sorri abertamente deixando seus olhos esverdeados um
pouco fechados.
- Estratégico eu diria. Se eu penso muito, deixo você pensar
e nessa você iria embora, como eu lhe deixaria impressionada com meu saber sem
lhe sequestrar para o café?
- Rá! Engenhoso você foi, e eu terei que aceitar se não
terei que passar o tempo todo com a mesma roupa, certo?
- Isso mesmo. E sem livro, o que considero pior.
- Foi o que pensei.
O café virou jantar, o jantar virou almoço e assim os dias
se sucederam. Dos ensinamentos, as conversas despretensiosas. Falamos sobre
todos os ensinamentos, sobre os problemas da vida, sobre esporte, musica, meu
amor por flores e seus significados e o futuro.
As vezes quando ele falava sobre o futuro, meu mundo parecia
desabar, porque de tudo que havíamos falado, aquele era o mais estarrecedor
possível.
Meu trabalho estava completo e o meu dia de embarcar havia
chegado. Como se não bastasse ainda tudo que nos havia acontecido em alguns
dias, ele me convida para o almoço de despedia no parque.
- Me espera na frente do espelho d’agua.
- Ora poxa... isso não vale.
- Como não vale? Vale sim...
No horário combinado, antes eu diria, já estava sentada ali
esperando. Tinham sido dias tão intensos que eu não conseguia entender quase
nada, só resolvi deixar o mundo correr e aproveitar a forma como a vida havia
me sorrido. De repente, eu vejo seu reflexo no espelho, carregando uma flor.
Naquele momento eu sabia, que a vida havia me dito para sorrir o quanto pudesse
e que ali, o riso cessaria um pouco. Me levanto bem devagar e encaro seus
olhos. Talvez o que me consolava era que
os olhos dele o traiam e ele não se sentia nada feliz em fazer aquilo, bom...
ao menos era assim que eu queria crer.
Antes que ele me dissesse algo eu digo:
- Um cravo riscado! Fez bem a lição de casa. – Eu mal o
olhava, porque não queria me trair. Eu era muito razoável com as peças que a
vida pregava, mas não iria me deixar abater, não ali.
- Me perdoe...
Tomo a flor da mão dele bem devagar.
- Obrigado, ao menos foi bem inteligente em nos poupar as
palavras e deixar o momento da forma como começou. Agora pode ir, quero ficar
sozinha e não aceito sua carona.
Viro de costas olhando para a agua, enquanto percebo que ele
se afasta. Toco a flor de maneira delicada, ensaio até um beijo. E sorrio!
- Realmente, a vida nos pregava peças! Um cravo riscado. Que
desgraçado esperto, sabia que me surpreenderia uma última vez.
- Foi o fora mais sensível que já tomei na vida.
O cravo riscado era uma flor exuberante, mas em seu
significado, dizia que a pessoa que o oferecia não poderia ficar com a outra.
Encaro mais uma vez a flor e a jogo na agua.
- O que no espelho começou, no espelho terminou!
E vamos para o início do capitulo 2!
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